Livro sobre Jabuticabeira, São Paulo, 2021

Um livro que eu gostaria de ter escrito

Clara Bomfin Cecchini

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Na única vez que estive em Londres (em 2016), amigos queridos que moram lá — e me conhecem bem! — me levaram para passear na Foyles Bookstore. Outros tempos, outro câmbio, outras preocupações, fiquei tão entusiasmada que somei 10 kg de livros, juntando aos anteriores da viagem. Tive a ideia de despachar para o Brasil e descobri — utilidade pública! — que se você coloca apenas livros no pacote o custo é bem menor.

Saudosismos à parte (o mundo era bom e belo visto daqui hoje), algo que ficou muito marcado na minha memória foi a existência de uma sessão inteira dedicada a livros “científicos para leigos”. Não me lembro exatamente o termo, se alguém souber me ajude! Mas o importante é que basicamente era um mundo maravilhoso para polímatas compulsivos que nem sempre têm disponibilidade ou interesse suficiente para ir direto às fontes acadêmicas. Mas que buscam mais do que um conhecimento superficial sobre os seus diversos interesses. Quem se identifica?

Essa experiência influenciou a escrita do meu livro, Aprendiz Ágil (com o Alexandre Teixeira), e tive o tempo todo na minha mente o objetivo de buscar uma escrita para interessados não especialistas e não necessariamente profissionais de educação. De forma alguma isso significa condescendência, muito pelo contrário. Significa ter critérios para selecionar cada ideia e cada palavra, pensando no leitor e no que você quer afinal. No Aprendiz Ágil, o desejo era aproximar a aprendizagem das pessoas. Esse pensamento direcionou tudo no meu processo, desde a seleção de conteúdos, a pesquisa, a escrita e a forma final.

Will Gompertz ❤

Mas não estamos aqui para falar de mim. Eu já tinha lido do Will Gompertz, (editor de artes da BBC) o Isso é Arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje, de 2012 (no Brasil pela Zahar, 2013), e A-MA-DO. O livro é uma viagem animada pela arte moderna. No caminho, vemos muito mais do que o nascimento das obras, passeamos pelas transformações culturais mais profundas de cada época e elementos da vida cotidiana e familiar dos artistas. Veja o autor falando um pouco sobre o livro neste vídeo. Se quiser ler sobre o livro, um texto de 2013 do Luciano Trigo no G1 traz uma boa ideia do que se trata (mas, obviamente, recomendo que leia antes o livro!). Segundo Luciano,

Capa e Sumário do Isso é Arte?

Não é um ensaio acadêmico, nem as reflexões do autor são muito profundas, beirando por vezes a irreverência, mas é uma obra útil para qualquer leitor interessado no tema. (Um panorama irreverente da arte moderna e contemporânea, G1, 2013)

Concordo com boa parte das críticas feitas ao livro nesse artigo, em especial sobre a tradução do título e a capa — um revolver fumegante, mesmo “artístico”, não me parece o melhor convite para as próximas páginas. Mas eu não usaria a adversativa como Luciano Trigo. Na minha visão estaria mais para: “A obra é interessante para qualquer leitor interessado no tema, beirando muitas vezes a irreverência e sem perder a consistência. Etc…”

O Pense como um artista… e tenha uma vida mais produtiva e criativa é de 2015, mesmo ano em que saiu também pela Zahar no Brasil. O livro pequenino com bolas amarelas na capa várias vezes passou por perto, mas foi só na última semana que me dediquei à sua leitura. (Mais uma vez aqui achei que a capa não foi feliz na versão brasileira :( . Mesmo achando bonita, me passa uma impressão de “manual de autoajuda corporativa”. Sei que é meio pesado isso, mas compartilho uma percepção difusa que não sei bem explicar…).

Este é um livro que vai te dar vontade de fazer coisas!

São 11 capítulos curtos, com quotes e imagens. Na página 14, Gompertz explica que:

Cada capítulo trata de um tipo de abordagem, ou atitude, que me parece essencial ao processo criativo, e a explora através da experiência de um artista específico. Não me refiro a especificidades técnicas — por exemplo, como preparar uma tela ou como pintar a luz — mas a maneiras de trabalhar e pensar que permitem aos artistas distinguir-se criativamente. Maneiras que podem ser aplicadas de modo universal a qualquer um que queira se tornar criativo.

O sumário do livro Pense como um artista

São admiráveis as sínteses que o autor gera em torno de cada ideia. Não apenas ao juntar artistas aparentemente tão distantes — o que dizer das duplas “Michelangelo e Ai Weiwei”; “Marina Abramovic e Caravaggio”? — mas especialmente por demonstrar no livro a energia de investigar e pesquisar nos livros, em ateliês, em museus, em grandes eventos de música pop. Uma veia jornalística que, mais do que trazer a informação, combina diferentes ideias de forma original e nos ajuda a gerar insights para nossa própria vida, a partir de elementos concretos, reais, e não generalidades sobre criatividade.

Página 9 do livro

A primeira frase destacada no livro “Somos todos artistas” me gerou um sentimento estranho a princípio, mas ao final saí pensando: opa, acho que sou um tanto artista sim.

Pela minha experiência de leitura e meu momento, eu destacaria dois capítulos.

O capítulo 3, Os artistas são curiosos de verdade, destaca a combinação potente do interesse genuíno no que se faz, o rigor absoluto com a qualidade do processo e a importância da colaboração.

“As ideias nascidas da ignorância, ou displicentemente gestadas, costumam ser fracas e na maior parte das vezes inúteis.” (p. 63).

Estudar, pesquisar, experimentar consistentemente. Ter honestidade e coragem para se implicar verdadeiramente no trabalho, combinadas ao rigor técnico absoluto. Seja quando está em cena o próprio corpo e a própria vida como faz Marina Abramovic; ou seguindo, com muita técnica, a paixão que “deu a Caravaggio força e propósito para conseguir desafiar a ortodoxia na mais ortodoxa de todas as épocas” (p. 74).

O capítulo 6, Os artistas pensam no contexto mais amplo e nos detalhes mínimos, foi extremamente revelador para mim, e pude reconhecer no meu próprio processo de trabalho quando a obsessão pelos detalhes faz sentido e o quanto ela pode ser paralisante em alguns casos. Neste capítulo um dos artistas referenciados é Luc Tuymans, pintor Belga contemporâneo, cujo ateliê Gompertz foi visitar. É um pintor que planeja toda uma exposição antes de seu pincel ter tocado uma tela sequer. E pinta seus quadros em um único dia — às vezes, após passar anos amadurecendo uma ideia.

Esse processo pareceu demais o processo de criação de uma experiência educacional, em que cada mínimo detalhe faz a diferença no engajamento dos participantes — e na qual quem conduz não pode jamais perder a visão do todo. Além disso, muitas vezes o meu processo de elaboração de uma aula/oficina/curso/projeto parece que acontece no susto, mas importante notar que é fruto de muito tempo de gestação anterior. Leituras, conversas, aulas que assisto (e no banho, onde a magia do nascimentos das ideias costuma acontecer). Saber que é possível reconhecer esses elementos na forma de trabalho de um grande artista faz a gente ressignificar a nossa própria experiência, processo reflexivo essencial à aprendizagem intencional e contínua.

A arte, a escola e a empresa

Gompertz encerra o livro com dois capítulos que explicitam a sua visão das relações que fui fazendo ao longo da leitura: com o mundo da educação e com o mundo do trabalho.

O capítulo 10 se chama Todas as escolas deveriam ser escolas de arte, título da obra de 2013 de Bob e Roberta Smith, ao que Gompertz complementa: ao menos em atitude, se não no currículo. Além de expressar a opinião de que o campo da educação é dos mais interessantes para atuar hoje — com o que eu concordo demais — o autor diz que

Uma mentalidade de escola de arte pode não só ensinar aos alunos como ter boas ideias, mas também a gerar a atitude empreendedora necessária para realizá-las. (p. 194)

Me lembro da minha formatura, em que nossa professora maravilhosa Grácia Navarro disse algo como “Vocês vão precisar abrir a própria trilha da profissão e inventar o próprio trabalho”. Não lembro as palavras exatas mas foi isso que ficou pra mim. Assim como eu, várias pessoas da turma 2002 da Cênicas da UNICAMP não fazem mais teatro — mas empreenderam lindas carreiras e inventaram trabalhos incríveis por aí. Essa ideia esclareceu um tanto mais a minha visão de que a minha formação tem a ver, sim, com o que faço hoje! (É notável também que o fato de eu ser atriz de formação já causou mais espanto pelos lugares que ando...)

No último capítulo, Gompertz traz o recorte da criatividade no mundo do trabalho. Mais uma vez de uma perspectiva original, indo muito além de que a criatividade será cada vez mais necessária à relevância profissional, provoca-nos a pensar como podemos aproveitar alguns elementos do modelo de trabalho dos artistas — em especial nós, profissionais autônomos. Não só na forma de produzir, mas também na forma como mercado olha nosso trabalho.

Se você ajudou a criar ou desenvolver um serviço ou produto comercial, não deveria ter uma participação proporcional à sua contribuição? Talvez a convenção atual, que exige que os freelancers cedam seus direitos de propriedade intelectual, também devesse ser alterada? Poderia ser substituída por um novo sistema que representasse uma forma mais proporcional de divisão de riqueza, que reconhecesse e recompensasse a maioria criativa e não apenas a minoria executiva?

Para Gompertz, ao longo dos séculos os artistas se aperfeiçoaram em equilibrar a prática artística e um trabalho mais seguro. “É uma mistura de alto e baixo risco que consigo ver se tornando um modelo mais comum em toda a sociedade” (p.203).

O risco que percebo hoje é muito mais pendermos para o outro lado da balança: deixar de equilibrar com uma prática criativa um trabalho mais seguro. Este livrinho poderoso me ajudou a reconhecer práticas que já tenho e que posso intensificar nos meus processos de trabalho para que se tornem efetivamente mais criativos. E outras que eu poderia incorporar.

Qualquer leitor pode dizer que “Pense como um artista é interessante mas não é acadêmico e poderia ser mais profundo.” Aqui fica meu convite para desenvolvermos nosso olhar para diferenciar conteúdos que são efetivamente superficiais e aqueles que se colocam como pontes convidativas para novas leituras e, especialmente, novas atitudes em nossa vida.

Um livro que eu gostaria de ter escrito.

Tá difícil no Brasil de hoje, Rodin e Gompertz, mas não vamos desistir!

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