Design de experiências de aprendizagem: um conhecimento específico (e um repertório metodológico a ser ampliado)

Clara Bomfin Cecchini
16 min readJul 27, 2020

Se como aprendiz me intriga como construir minha própria trajetória de aprendizagem ao longo da vida, como profissional da educação a busca por melhores formas de fazer é a força que me impulsiona.

Nos últimos tempos, vem ficando cada vez mais evidente que todos seremos aprendizes constantes — e sendo a aprendizagem um fluxo integrado à vida e ao trabalho, seremos também responsáveis por criar dinâmicas de construção e compartilhamento de conhecimento.

Essa constatação de que todos somos aprendizes (e, de certa perspectiva educadores), não pode significar de forma alguma uma desvalorização dos profissionais da educação e dos elementos teóricos e técnicos do seu fazer.

“Aprender a aprender” vem sendo cada vez mais fortalecido como fundamento da trajetória do aprendiz. Do outro lado, acredito que o que complementa a equação não é “saber ensinar”, mas sim saber desenhar experiências para que os aprendizes construam conhecimento a partir de seu contexto e do contato com saberes previamente construídos pela humanidade. Ampliar repertório para poder criar novas realidades para viver. Experiências de aprendizagem que podem se utilizar de inúmeros recursos, tecnológicos ou não, presenciais ou não, diversos, múltiplos e vivos.

A febre da personalização, da empolgação com a disponibilidade imensa de informações e da aprendizagem autodirigida não pode enfraquecer o valor que damos às estratégias de aprendizagem. Pelo contrário, elas são ainda mais necessárias nos dias de hoje — e está aí o Forum Econômico Mundial a concordar comigo!!! (contém ironia, hehe)

Vejam a segunda linha na coluna de habilidades crescentes em importância. Fonte: https://www.weforum.org/agenda/2018/09/future-of-jobs-2018-things-to-know/

A entrada da tecnologia nas dinâmicas de aprendizagem abriu todo um novo campo não apenas metodológico ou ferramental, mas também das dinâmicas do próprio conhecimento. De sua criação, validação, disseminação, organização… é um universo fascinante.

Não precisaremos todos nos tornar especialistas. Mas precisamos ser no mínimo curiosos a respeito de um tema que cada vez mais faz parte de nossa vida: as possibilidades da aprendizagem em nossa época. Se não, mais uma vez nos tornaremos consumidores passivos e agiremos segundo as decisões de outros — e, o pior, sem ter consciência disso. E sem a possibilidade de criticar daquilo que consumimos.

Pensando nisso, e com o interesse massivo que a aprendizagem via tecnologias ganhou em tempos de Covid-19 e isolamento social, resolvi investigar: quais questões a união tecnologia e aprendizagem traz? Quais os potenciais e riscos? Como aproveitar mais os potenciais?

Encontrei algumas referências que compartilho aqui neste texto.

Entre elas, um dos projetos mais emblemáticos quando falamos de educação e tecnologia, o One Laptop per Child. Fiquei realmente surpresa com a quantidade de reportagens produzidas sobre ele! Quanto aprendizado podemos ter a partir de um único projeto. Mesmo que não trabalhemos com “laptops” nem com “child”, vale a pena aprender com essa experiência.

As outras referências são mais relacionadas a metodologias possíveis para unir tecnologia e aprendizagem: TPACK e SAMR. Leia para entender essas siglas loucas.

Certamente existem muitos outros exemplos que podem nos ensinar muito! Mas esses já nos ajudam a vislumbrar o enorme universo que se abre do encontro da tecnologia com a aprendizagem.

Vale também o insight de nos inspirarmos mais nos pesquisadores de educação, mesmo que não sejam exatamente do “tipo de educação que fazemos”.

Aprender por analogia e fazer a transferência do conhecimento de um campo a outro é das estratégias mais eficientes para inovar em nossos próprios campos (mais sobre isso aqui).

É mais do que um computador: quando o hardware entra na jogada

Imagem do site oficial OLPC.

“Nós deixamos as caixas na aldeia. Fechadas. Fechadas com fita cola. Nenhuma instrução, nenhum ser humano. Eu pensei que as crianças fossem brincar com as caixas. Passados 4 minutos, uma das crianças não só abriu a caixa, como descobriu o botão ligar/desligar. Ele nunca tinha visto um botão ligar/desligar. Ele ligou o tablet. No prazo de 4 dias, eles já estavam a usar 47 aplicações por criança por dia. Em duas semanas, já cantavam músicas de ABC [em inglês] pela aldeia. E dentro de cinco meses, eles hackearam o Android. Algum idiota da nossa organização ou no Media Lab havia desativado a câmera! E eles descobriram que o tablet tinha a câmara e hackearam o Android.”

Esse depoimento de Nicholas Negroponte foi feito no MIT em 2012. Negroponte é um nome reconhecido no mundo da tecnologia: professor no MIT, um dos fundadores do MIT Media Lab e criador da One Laptop per Child (OLPC, em tradução livre “Um Laptop por Criança”).

A OLPC é um projeto mantido pela Associação One Laptop per Child, baseada em Miami, e a Fundação One Laptop per Child, com sede em Cambridge (Massachusetts), duas organizações sem fins lucrativos criadas para supervisionar a criação de dispositivos educacionais acessíveis para uso nos países em desenvolvimento.

A missão da OLPC é empoderar as crianças mais pobres do mundo através da educação.

Mais de 2,5 milhões de crianças e professores em 60 países já tiveram acesso aos laptops de baixo custo desenvolvidos pela OLPC, com software livre e diversos aplicativos para a aprendizagem. Geralmente, os laptops são adquiridos por governos ou outras instituições e chegam a custo zero nas escolas. Além da oferta dos computadores, a OLPC realiza ações de formação de professores, acompanhamento e avaliação.

Nesse depoimento, Negroponte refere-se à experiência do projeto na Etiópia — que foi um pouco diferente do usual, pois atuou com tablets e não laptops; além disso, não teve nenhuma ação complementar. Simplesmente, mais de mil tablets foram deixados em uma região, em caixas sem qualquer tipo de instrução, apenas um incentivo como:

As crianças com os tablets na Etiópia. Fonte: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/03/criancas-etiopia-tablets.html

‘Que tal estas caixas? Façam o que quiserem com elas’

A experiência queria demonstrar que crianças podem ser autodidatas, mesmo em um contexto sem a presença de palavras — nessa região do mundo não há jornais, sinais de rua, nem rótulos nos alimentos, nada. Ou seja, elas não tinham nenhum letramento prévio. E conseguiram não só usar o tablet, como hackear o sistema operacional.

A experiência do One Laptop per Child é emblemática quando refletimos a respeito de tecnologia e aprendizagem.

Poucas iniciativas colocaram à prova de forma tão massiva uma premissa assim categórica: o acesso à tecnologia e à conectividade melhora a educação de crianças que não têm acesso a ensino de qualidade. E esse elemento de fascínio e sedução, o hardware, foi o protagonista da história. Assim, podemos nos perguntar: seria ele capaz de “revolucionar a educação”? Essa premissa em que o projeto se baseou faz sentido?

Antes de tentar responder, é importante compreender de onde vem esse fôlego da OLPC. Para começar, Negroponte é um nome reconhecido na comunidade acadêmica e tecnológica, associado ao MIT Media Lab. Tão importante quanto, foi a disponibilidade de recursos desde o início: o projeto foi originalmente financiado por organizações tais como AMD, Chimei, eBay, Google, Marvell, News Corporation, Nortel, Red Hat e Quanta Computer Inc..

Picture OLPC Kofi ANNAN — UN Secretary General demonstrating an OLPC-XO with Nicholas NEGROPONTE

O grande impacto midiático que o projeto alcançou não apenas resultou dessa combinação, como parece ter sido intencional desde seu princípio: a OLPC já nasceu como uma grande promessa no lançamento realizado por Negroponte em 2005 em uma cúpula de tecnologia realizada pela Organização das Nações Unidas em Tunis. Quem abriu sua apresentação foi Kofi Annan, secretário-geral da ONU na época. Nesse lançamento, Negroponte levou o primeiro protótipo dos laptops de baixo custo, dizendo à plateia que poderiam ser produzidos à casa de centenas de milhões — com custo até inferior aos 100 dólares anunciados.

Por características como essas é que o projeto ganhou a dimensão e a relevância que ganhou, com as suas experiências sendo relatadas no MIT e difundidas na imprensa mundial.

Nem sempre de forma positiva. A The Verge publicou, em abril de 2018, extensa reportagem intitulada OLPC’s $100 Laptop Was Going To Change The World — Then It All Went Wrong (Os Laptops de 100 dólares da OLPC iam mudar o mundo — até que tudo deu errado). Muitas matérias na imprensa apontaram os problemas da OLPC, mas essa da The Verge contou a história completa em detalhes — e deflagrou vários outros textos reforçando o entendimento de que a OLPC foi um “fracasso espetacular”. Gerou, inclusive, uma resposta oficial em que se afirma, em negrito: “a OLPC é um programa educacional, não uma startup de hardware.

Segundo a The Verge, já na primeira demonstração houve um problema com o protótipo e uma peça saiu na mão de Kofi Annan. Diz a matéria,

“o momento foi breve, mas prenunciou perfeitamente como os críticos veriam o One Laptop Per Child alguns anos depois: um projeto chamativo, inteligente e idealista que ‘quebrou’ no seu primeiro contato com a realidade.”

À parte essas situações inusitadas, voltemos à nossa pergunta:

a entrada do hardware nos processos educacionais é capaz de, por si, melhorar a aprendizagem?

Quando pensamos na nossa própria aprendizagem, o ‘não’ é quase óbvio. Mas por que quando pensamos em projetos dessa dimensão para esse tipo de público tendemos a acreditar que pode ser diferente? Que tipo de ganho podemos ter com uma intervenção pontual em um sistema tão complexo?

Crítica nada sutil ao projeto que circulou alguns anos atrás. https://megaridhapuspita.wordpress.com/2013/01/21/the-vision-of-one-laptop-per-child/
Outra também bastante contundente… aqui: https://larrycuban.wordpress.com/2018/05/05/whatever-happened-to-one-laptop-per-child/

O meu objetivo não é, de forma alguma, desqualificar o projeto ou dar um veredito para essa polêmica discussão, que já leva anos e muitas páginas de artigos em diversos veículos de comunicação.

Mas é mesmo difícil ter clareza sobre os resultados educacionais da OLPC. Sobre isso, conseguimos algum conhecimento apenas quando pesquisamos a implementação em cada país. Mesmo a Nicarágua, que tem um relatório longo sobre a experiência, foca em depoimentos e percepções qualitativas dos envolvidos, como narrativas e citações de falas. Os números se resumem a indicadores operacionais, como horas de formação de professores, laptops distribuídos, crianças beneficiadas, etc. Há alguns dados educacionais, mas, mesmo que 76% dos estudantes se digam participativos em sala depois do projeto (antes eram 40%), permanece a pergunta: eles aprenderam mais e melhor? Sem dúvida, há méritos no projeto, mas não há como afirmar, com certeza, que a educação melhorou. E que, portanto, aquela premissa inicial era verdadeira.

Em um artigo de 2012, Pablo Ibarrarán, líder da área social do Banco Interamericano de Desenvolvimento, conta que em 2009 o BID foi chamado pela Diretoria de Tecnologia do Ministério da Educação do Peru para realizar o que ele chama de “primeira avaliação rigorosa de impacto” do programa OLPC — a primeira concentrada nos resultados educacionais, de aprendizagem. Com uma metodologia estruturada, grupos de controle e outros critérios de pesquisa, descobriu-se que o programa aumentou muito o acesso a computadores e desenvolveu algumas habilidades nos alunos. Porém, “não encontramos evidências de que o programa tenha aumentado o aprendizado em matemática ou linguagem” — que, segundo o artigo em questão, era o objetivo declarado da One Laptop Per Child no contexto pesquisado.

Aí está algo a ressaltar dessa experiência, que vale para muitas outras:

Se o propósito de uma iniciativa é educacional, suas ações e métricas também precisam ser.

Se vivemos uma crise global de aprendizagem, melhorar a educação significa atuar sobre a aprendizagem — e há meios técnicos disponíveis para avaliar a efetividade das ações.

O acesso à tecnologia pode até ter um valor em si em determinados contextos, mas não se conclui automaticamente daí que tal acesso, por si só, faça as pessoas aprenderem mais ou melhor. Isso vale para qualquer contexto humano, da necessidade de letramento na Etiópia a operários de uma indústria precisando aprender novos processos, passando pelos alunos de MBA de uma Escola de Negócios na Índia.

A experiência com os tablets na Etiópia em princípio nos fascina e nos provoca para o mundo de possibilidades que a tecnologia abre para melhorar a educação. Mas um olhar mais atento faz emergir uma série de novas perguntas: qual a intencionalidade educacional dessa experiência? Qual o significado construído a partir desse conhecimento adquirido pelas crianças de forma “autodidata”? Quais são os parâmetros éticos de experiências como essas? São questões próprias da educação, que tendem a ser esquecidas por iniciativas que têm como foco principal as máquinas. Lembrando Paulo Freire, uma educação comprometida com a liberdade jamais pode prescindir da “problematização dos homens em suas relações com o mundo”.

No seu artigo sobre a OLPC, Pablo Ibarrarán diz não se surpreender com a ausência de resultados em matemática e linguagem, uma vez que

“o programa não incluiu intervenções específicas para integrar o laptop aos currículos, nem os computadores incluem software específico de matemática ou linguagem”.

Outro aspecto importante a ser considerado na ideia de que a melhoria da educação pode decorrer, de forma natural, da disponibilização de recursos tecnológicos. A integração da tecnologia aos processos de aprendizagem não é óbvia. É uma construção intencional a ser feita pelos educadores — eles mesmos, muitas vezes, aprendizes no uso desses recursos.

E aqui não falamos de educadores no sentido estrito de professor à frente de uma sala de aula, mas de todos aqueles que concebem ou atuam em processos educacionais. Em escolas, instituições ou empresas. Conduzindo processos formais de educação ou liderando processos de trabalho que envolvem a aprendizagem.

Se a tecnologia e a aprendizagem são ubíquas, ambas interagem com vários outros componentes de nossa vida. Precisamos ter sensibilidade para perceber essas interações, aprender com elas e potencializá-las, assim como precisamos ter atenção para os novos campos de conhecimento que emergem dessas convergências.

Assim como saber se comunicar é fundamental para todos os profissionais — e não apenas para os comunicadores –, compreender alguns elementos da aprendizagem passou a ser essencial para todos nós. Em alguma medida, se trabalho e aprendizagem não se separam mais, estará sob responsabilidade de todos criar soluções e ambientes em que as pessoas aprendam enquanto trabalham — e vice versa. Vale, então, conhecer algumas referências conceituais do campo educacional e se interessar pelo que dizem os especialistas.

Novos frameworks para uma nova forma de olhar

Conhecimento de conteúdo, pedagogia e tecnologia

O exemplo da One Laptop per Child nos desperta para muitas questões sobre aprendizagem e tecnologia. O comentário de Ibarrarán, quando diz não ter visto integração dos laptops ao currículo ou softwares específicos das disciplinas, provoca-nos a ir ainda mais fundo: supondo que tenhamos a intenção de fazer esse movimento, como fazê-lo da forma mais proveitosa? Que universo se abre para o processo de aprendizagem quando usamos as tecnologias?

Estudiosos da educação vêm sistematizando algumas dessas metodologias nos últimos anos. O campo do design de aprendizagem tem um novo conjunto de possibilidades nas mãos.

Como vimos no caso da OLPC, o caminho entre a inserção do equipamento e o máximo aproveitamento dos seus recursos para a aprendizagem não é nada óbvio. O encontro da tecnologia com a educação cria um novo campo, com possibilidades próprias.

Alguns trabalhos acadêmicos se dedicam a esse tema, e é especialmente interessante conhecer o artigo publicado em 2009 no Journal of Research on Technology in Education pelos pesquisadores Judith Harris, do College of William & Mary, Punya Mishra e Matthew Koehler, da Michigan State University. Intitulado “Conhecimento dos professores sobre conteúdo tecnológico pedagógico e tipos de atividades de aprendizagem: reformulando a integração currículo e tecnologia”, o ensaio, embora com esse nome complexo, vai direto ao ponto:

“Muitos métodos atuais são tecnocêntricos, frequentemente omitindo consideração suficiente das relações dinâmicas e complexas entre conteúdo, tecnologia, pedagogia e contexto”.

Segundo os autores (que tratam da educação básica, mas podemos expandir seus conceitos para qualquer campo), os pesquisadores defendem o uso da tecnologia na educação para apoiar a investigação e a colaboração entre os alunos, mudar as práticas pedagógicas ampliando as possibilidades de aprendizagem; mas os professores, em regra geral, usam basicamente: softwares de apresentação, sites amigáveis e ferramentas de gerenciamento para aprimorar a prática existente. Ainda para os autores, a abordagem tecnocêntrica acontece especialmente na formação de professores e na disponibilização de recursos de hardware e software para as escolas, sem considerar dois domínios essenciais: o conteúdo e a pedagogia.

Podemos fazer um paralelo com a rotina de trabalho dentro das empresas, em que gestão do conhecimento e aprendizagem integrada às atividades são ainda, muitas vezes, práticas pouco estruturadas — e não pela falta de tecnologia. O que podemos notar é uma carência de compreensão de como usá-la da forma mais proveitosa possível, além da dificuldade em pensar fora dos processos e controles atuais.

Retornando ao campo da educação, mais uma vez vemos a importância de trabalhar a tecnologia considerando os elementos do campo da aprendizagem. Quando falamos de aprendizagem, é diferente o ensino de arte para crianças, a alfabetização de adultos, o ensino de ciência para jovens, o treinamento de profissionais de vendas: e a tecnologia tem potenciais específicos em cada caso. Harris, Mishra e Koehler chamam a atenção para o fato de que essa abordagem tecnocêntrica corrente…

… ignora a variação inerente a diferentes formas de conhecimento e investigação disciplinar, bem como as variadas estratégias pedagógicas mais adequadas para o ensino desse conteúdo. Diferentes disciplinas têm estruturas organizacionais diferentes, práticas estabelecidas, maneiras de reconhecer evidências e provas e abordagens para o desenvolvimento do conhecimento (Koehler & Mishra, 2008). Além disso, o conhecimento desses atributos disciplinares é necessário, mas não suficiente, sem o conhecimento das estratégias pedagógicas apropriadas para uso em cada área de conteúdo.

Introduzir tecnologia nos processos de aprendizagem muda mais do que as ferramentas utilizadas. Muda a forma de tratar o conteúdo e como ensiná-lo em suas especificidades. Outro elemento lembrado pelos autores é o contexto da aprendizagem. A realidade daqueles que vivenciam o processo educativo, também tão essencial a Paulo Freire. Esperar do simples contato com as máquinas um resultado padrão de melhoria de aprendizagem não é razoável.

A visão da necessidade de combinação de conhecimentos tecnológico, pedagógico e de conteúdo resultou na elaboração de um modelo teórico chamado TPACK — Technological Pedagogical Content Knowledge (em tradução livre, Conhecimento Tecnológico Pedagógico de Conteúdo). Esse conceito se reflete em um diagrama amplamente difundido, que demonstra que o conhecimento de um educador precisa estar na intersecção desses três campos de conhecimento. Foi elaborado a partir de um conceito da década de 80, PCK, que define o conhecimento pedagógico do conteúdo. Mishra e Koehler, nos anos 2000, elaboraram o novo conceito incluindo a tecnologia, conectando teoria e prática e considerando a imensa variabilidade de situações encontradas pelo professor. Quanto mais ele estiver preparado para atuar no encontro desses três campos, mais efetiva e interessante será a sua prática.

Imagem do artigo original de Harris, Mishra e Koehler.

O TPACK engloba a compreensão e comunicação de representações de conceitos usando tecnologias; técnicas pedagógicas que aplicam tecnologias apropriadamente para ensinar conteúdo de maneiras diferenciadas, de acordo com as necessidades de aprendizagem dos alunos; conhecimento do que torna os conceitos difíceis ou fáceis de aprender e como a tecnologia pode ajudar a corrigir os desafios conceituais; conhecimento da compreensão anterior do aluno em relação ao conteúdo e suposições epistemológicas, juntamente com a experiência tecnológica relacionada ou a falta dela; e conhecimento de como as tecnologias podem ser usadas para desenvolver a compreensão existente para ajudar os alunos a desenvolver novas epistemologias ou fortalecer as antigas. O TPACK é uma forma de conhecimento profissional que os professores orientados para o currículo, tecnologicamente e pedagogicamente, usam quando ensinam.

Nada trivial, portanto.

Mais um: SAMR

Outro framework bastante utilizado foi criado pelo Dr. Ruben Puentedura para medir o grau de integração da tecnologia em sala de aula. Chamado SAMR, é uma gradação dessa integração, da sigla em inglês Substitution, Augmentation, Modification, Redefinition.

Substituição é quando acontece simplesmente a troca de um recurso não digital por um digital — por exemplo, um ditado realizado no teclado; aumento é quando há também uma substituição funcional, porém com aumento das possibilidades de realização da tarefa com a tecnologia. Além de escrever um texto, os alunos elaboram uma apresentação e a projetam na sala. Nesses dois primeiros níveis, há apenas um aprimoramento das práticas, sem nenhum ganho efetivo na aprendizagem.

Os dois níveis superiores Puentedura considera transformadores. Modificação é quando a tecnologia de fato cria outra possibilidade para a atividade: em vez da exposição do trabalho ser uma apresentação, que poderia ser feita sem tecnologia, poderia ser criado um conteúdo colaborativo com recursos digitais, por exemplo. Algo que sem a tecnologia não existiria. O último nível, de redefinição, é quando a tecnologia amplia os tempos e espaços de aprender. Por exemplo, as produções dos alunos se conectam ao mundo, ampliam-se as possibilidades de pesquisa e criação colaborativa fora das paredes da sala de aula.

Imagem do material original de Puentedura.

Essa gradação não é necessariamente uma valoração: devemos buscar acabar com a substituição e ficar só com a redefinição. O que o SAMR proporciona é um entendimento do que está sendo feito de verdade para aprimorar as práticas e aproveitar melhor os recursos da tecnologia. Fomenta a criatividade de quem desenha as experiências educacionais, ao mesmo tempo em que não permite o desvio de foco do essencial: a efetividade da aprendizagem.

Esses dois exemplos — TPACK e SAMR — trazem bastante clareza sobre o quanto educar é uma atividade que exige habilidades e conhecimentos especializados. As tecnologias potencializam o campo de atuação dessas competências. Não as substituem. Ao contrário, exigem mais delas.

Pra fechar — por agora…

Retornando ao OLPC, o único acordo a que se parece ter chegado a respeito do projeto é que foi fundado por Negroponte com boas intenções. Mas ficou claro que isso não é suficiente quando a ambição é melhorar algo tão essencial e complexo quanto a aprendizagem.

Uma das críticas mais correntes ao OLPC é o questionamento a uma de suas premissas: um computador por criança vai melhorar a educação, e é disso que as crianças pobres precisam. Desde o lançamento, os céticos já viam nesse modelo uma imposição — se não da indústria americana, ao menos do jeito americano de ver as coisas: um reflexo da arrogância da indústria de tecnologia e uma solução padrão que resolveria os mais complexos problemas do mundo. Para objetivos educacionais, pensamentos educacionais, estruturas e conceitos educacionais.

Não há salvacionismo possível, seja da tecnologia, da economia ou de qualquer outra disciplina.

Ainda para corroborar essa visão, um êxito reconhecido do OLPC é justamente no campo da tecnologia: o desenvolvimento de um novo mercado.

“Se algo de bom surgiu do projeto do OLPC foi a percepção de que havia um mercado para computadores de baixo custo, baixa performance e alta portabilidade”. (veja aqui)

A mídia especializada em tecnologia recorrentemente menciona o fato de que o OLPC foi essencial para o barateamento dos equipamentos pessoais portáteis, pois demonstrou que havia demanda, criando o mercado dos chamados netbooks.

Não poupam críticas, porém, à abordagem educacional do projeto e à sua efetividade no desenvolvimento tecnológico, pois outros foram mais ágeis em atender a essa demanda.

Não temos dúvidas de que o campo da educação e tecnologia é ainda um universo a explorar — e assim vai continuar sendo, pela velocidade com que as duas áreas estão mudando.

O importante é nunca esquecermos um “pequeno detalhe”, que deve ser o centro organizador de todos os esforços e investimentos: a aprendizagem.

Em tempo: agradecimentos

É tanta gente que me inspira a escrever que corro o risco de ser injusta aqui ao agradecer… mas o olhar desenvolvido neste artigo reflete diálogos instigantes com a Patrícia Tostes e a Valquíria Cabral, a partir de uma pesquisa que eu já vinha desenvolvendo.

Obrigada pela generosidade nas leituras e provocações. :)

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